Contemporaneidade irônica e Toxicomania

Contemporaneidade irônica e Toxicomania Cláudia Henschel de Lima. (Membro da EBP-AMP. Professora Adjunta III. UFF. ICHS.PUVR. Coordenadora do LAPSICON). A Modernidade lírica de Baudelaire No trabalho apresentado no II seminário do GT da ANPEPP de Psicopatologia e Psicanálise, intitulado Toxidade contemporânea na conjunção Marx com Lacan, localizei a poesia lírica de Baudelaire como expressão da ontologia do presente. Michel Foucault (2000) localizara na posição do intelectual a necessidade de se deixar afetar pelo problema colocado pela modernidade para, a partir daí, elaborar uma resposta. Para além, então, de uma determinação da modernidade a partir de um calendário de fatos históricos fixos e lineares, a ontologia do presente valoriza a aparição tipicamente moderna de um ethos, de um posicionamento que o pensador pode assumir frente ao tempo. O personagem do flâneur encarna esse ethos, essa posição subjetiva que testemunha a transformação estrutural do tempo que avança na direção do mercado de consumo e da quantificação do trabalho e do espaço que se modifica radicalmente com a arquitetura das largas avenidas parisienses, que toma o lugar dos becos e das ruas estritas onde era possível dispor as barricadas: é uma Paris estranha à Baudelaire. Sua poesia lírica testemunha o estranhamento diante do favorecimento do capital financeiro e da reestrutração do espaço pela arquitetura do Barão Haussmann - profilática em relação aos becos, aos pardieiros, às barricadas. O poema À uma Passante retrata a solidão que se aprofundará, a partir de então marcando a experiência subjetiva na modernidade: A rua em derredor era um ruído incomum Longa, magra, de luto e na dor majestosa, Uma mulher passou e com a mão faustosa Erguendo e balançando o festão e o debrum (...) Eu bebia perdido em minha crispação No seu olhar, céu que germina o furacão, A doçura que embala e o frenesi que mata. (...) (...) Só te verei, um dia na eternidade? Bem longe, tarde, além jamais provavelmente! Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais, Tu que eu teria amado – e o sabia demais! Considero a poesia lírica de Baudelaire escandalosamente atual por antecipar, no século XIX, o que, hoje, ocupa derradeiramente o zênite de nossa civilização: o objeto a mais gozar. A roupa negra da passante é, para o flâneur, o símbolo do luto perpétuo que invade o sujeito nessa modernidade de época. A partir, então, dessas considerações iniciais, proponho neste trabalho pensar a toxicomania como uma característica do funcionamento do capitalismo atual. Daí, no trabalho anterior eu ter trocado o termo por toxidade. Essa proposta está ancorada em duas referências de Lacan, muito próximas entre si: 1. A passagem de O Seminário 17 – O avesso da psicanálise (1969-1970/1992 p.159) , onde Lacan define com precisão o estatuto do significante na contemporaneidade: Temos que prestar muita atenção ao seguinte, é que, num nível mais elevado – o de um objeto a (...) a palavra pode fazer o papel da carniça. 2. A resposta, dada por Lacan, à questão 3 de Radiofonia (1970), de que a expansão do capitalismo no século XIX, é correlata ao declínio do Nome-do-Pai e à ascensão do objeto a ao zênite de nossa civilização. Lacan é, então, sensível à opressão sentida na modernidade. E ilumina a forma como Busca-Pé, personagem central do livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, relata o que são os tempos modernos, ou nossa contemporaneidade: (...) ir ver o padre Júlio a fim de, uma vez confessados os seus pecados, cometê-los novamente, tal como uma alma errante em cada canto da rua deste mundo excessivamente moderno. Para ele só a erva era a luz da vida: dava sede,fome e sono Contemporaneidade irônica Exército de resíduo. Quando a noite lança suas sombras sobre o coração financeiro do Rio de Janeiro conhecido como triângulo das bermudas surge, no horizonte, um exército de seres humanos solitariamente apegados aos efeitos do estalo dessa cocaína mais vagabunda: crack. Nomeada de triângulo das bermudas na época do regime militar, essa região alterna, hoje, duas populações distintas: de dia, a multidão dos executivos, que ali circulam orientados pela flutuação na cotação das ações da Petrobrás ou pelo impacto da instabilidade política do país, no mercado; à noite, o exército de adolescentes consumidos pelo crack. Entre ambos, um elemento em comum: eles são o Um-sozinho, perambulando por uma cidade onde impera o anonimato. Entre ambos uma distância profunda: o exército de consumidos pelo crack integra o movimento de uma cidade que produz resíduos de todos os tipos: dos acumulados em lixeiras até aqueles que se confundem com a paisagem da existência. A cidade do século XXI não suporta a ética baudelaireana do flaneur, que fazia do tumulto da cidade, um refúgio do proscrito e o mais novo entorpecente do abandonado . A cidade do século XXI compõe o que Jacques-Alain Miller denominou de modernidade irônica O Rio de Janeiro do século XXI não é um refúgio ou entorpecente. Ele é a cidade irônica fazendo do exército dos consumidos pelo crack, o resíduo de um estilo pseudocosmopolita de vida em que o apelo à ordem urbana funciona para consolidar a cidade como objeto de consumo: cartão postal. É nesse contexto que o trabalho se ancora na hipótese da psicanálise de orientação lacaniana, de que o entendimento da infância e adolescência em situação de rua, e que recorrem ao crack, só é possível se levarmos em conta o modo de funcionamento do significante na civilização. A desumanização do Campo. Subvertendo a fórmula cartesiana de que o bom senso é a coisa melhor compartilhada, Freud declarara, no marco da I Guerra, sua preocupação com o avanço da miséria subjetiva à escala da tuberculose, antecipando que seu agravamento era resultado direto da conjunção sombria entre planejamento biopolítico e pulsão de morte . A eclosão da II Guerra testemunhará pelo campo de concentração, que o mesmo cálculo político da recuperação de uma Alemanha assolada pelas condições desastrosas de rendição, impostas pelo Tratado de Versalhes, era inseparável da desumanização brutal de tudo aquilo que pudesse contrariar o delírio de uma raça ariana: destituição do nome e despojamento do laço de parentesco, destituição de bens e fixação no território do Campo em que a morte é a única coisa compartilhada. Essa lógica do Campo sustenta o funcionamento do significante em nossa civilização: ele funciona como carniça . Essa referência à carniça indica o horizonte a partir do qual é possível, também interrogar a tese de Lacan: a ruptura com o falo no recurso à droga é inseparável da irrupção de um gozo descarnado, próprio da devoração que o Outro impõe.E o resultado não poderia deixar de ser outro: fixação do ser humano na condição de objeto a ser consumido ou mancha a ser eliminada. A Cidade: palco da palavra que insulta. Lacan afirma que no desatino do gozo, só há o Outro para situá-lo. Lendo essa frase sem perder a referência de que o significante pode funcionar como carniça, sustento que a situação de rua não pode ser explicada pelo argumento moral da periculosidade do indivíduo. Sua genealogia precisa ser situada na emergência da carniça ou do significante do insulto. Muito recentemente, o planejamento biopolítico do Rio de Janeiro para o carnaval e os mega eventos esportivos de 2014 e 2016 resultou no processo de requalificação de áreas urbanas, classificadas como áreas degradadas. Para isto, instalou-se um procedimento de desapropriação em comunidades, operações de pacificação e recolhimento compulsório de crianças, adolescentes e adultos em situação de rua. O marco teórico do ensino de Lacan esclarece como o planejamento biopolítico do Rio de Janeiro: 1. Tem a responsabilidade da palavra que insulta: a moradia se reduz à uma área degradada à ser removida, assim como cracolândia é o nome que fixa territorialmente crianças e adolescentes na condição de dejeto da cidade à ser recolhido aos abrigos conveniados com a Prefeitura. 2. Tem efeitos terríveis sobre o funcionamento subjetivo nessa condição: perpetuando a conjunção entre planejamento biopolítico e pulsão de morte, seja pela via da nomeação ofensiva presente em cracolândia seja pela via do destino pelo abrigo, o recolhimento compulsório se consolida como um dos mais poderosos instrumentos de gestão das multidões pela rejeição da diferença, criminalizando a situação de rua. É o que Marie Hélène Brousse considera como a reabsorção da diferença no desvio em relação à norma: o um-sozinho, não é o exército de reserva; ele é o indivíduo perigoso, dejeto à ser segregado do laço social a fim de que a ordem pública se mantenha. A condição de situação de rua não escapa à ascensão do objeto a ao zênite da civilização: no cartão postal que se consome ralé, cracudo, zumbi, são alguns dos significantes carniça que não recobrem os cor¬pos com a autoridade da subversão do sujeito, mas os colocam na mira da inundação cocaínica do crack e da fixação no nomes-do-pior.

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