Da felicidade New Age ao objeto a na psicanálise

Da Felicidade New Age ao objeto a na Psicanalise.
Claudia Henschel de Lima (EBP-AMP)
A fundação da psicologia, no final do século XIX, obedeceu ao projeto epistemológico de constituição de uma ciência da razão. Duas metodologias bem distintas habitaram esse mesmo solo: a metodologia experimental – que cumpre o objetivo de validar empiricamente as leis gerais de funcionamento do psiquismo – e a metodologia clínica que estende a psicologia para o domínio da investigação e tratamento individual da psicopatologia.
Em 1998, ao assumir a presidência da American Psychological Association (APA), Martin Seligman opera uma mudança de paradigma na investigação psicológica, ao defender que a psicologia deve deslocar-se da clínica individual e psicopatológica para a elaboração de leis gerais e quantitativas da regulação da resposta emocional normal, positiva – a felicidade, o contentamento, o otimismo, a gratidão e a qualidade de vida. Essa nova gestão da APA impõe, entre o final do século XX e o início do século XXI, o desenvolvimento de um novo domínio de investigação científica - a psicologia positiva - cujo objetivo é, através da psicometria, medir e avaliar as potencialidades e virtudes humanas. No quadro desta psicologia, não se trata de fazer com que os indivíduos saiam de um escore de bem-estar subjetivo de -5 para -2 ou 0, mas de transformar esse escore de +2 para +5. O argumento para a defesa desta nova razão psicométrica na psicologia é, claramente, higienista. Em primeiro lugar, trata-se de expandir a utilidade da psicologia para o maior número possível de indivíduos pela diminuição do custo econômico, superando uma metodologia clínica centrada no diagnóstico e no tratamento das psicopatologias, que exige treinamento prolongado para o profissional, dispendioso para o paciente e, consequentemente, restrito à um número pequeno de indivíduos. Em segundo lugar, a partir dessa medida econômica expansionista, trata-se de assegurar o viés profilático do trabalho psicológico, que deve dedicar-se ao desenvolvimento de medidas preventivas e uniformes, junto às virtudes comuns a todos os indivíduos, a fim de evitar a eclosão de transtornos afetivos e de personalidade e de doenças auto-imunes. Essa mudança paradigmática do negativo para o positivo, do tratamento clínico da psicopatologia para o reforço da virtude, evidencia a face “alto astral” da nova ciência da mente: medir para ser feliz; ser feliz para ser bem-sucedido. Mas, essa face “alto astral” se sustenta como ciência precisamente porque a felicidade não é mais um tema metafísico. Por meio da imagética cerebral, é possível localizar empiricamente a morada deste sentimento humano: o lado esquerdo do córtex pré-frontal. E é nesse ponto, que a psicologia positiva revela sua outra face – a face new age importada do cognitivismo (La Sagna, 2006)[i]. Essa face new age comparece no fundamento quantitativo e empírico desta psicologia autorizada pela APA, que converte a realidade qualitativa da felicidade (Miller, 2008)[ii] em medida psicométrica do bem-estar subjetivo e que a esgota na rede de comunicação neural do córtex pré-frontal esquerdo. Nesse esgotamento, nessa baixa de tonalidade progressiva da felicidade no contemporâneo, dois elementos se destacam: uma terapêutica moral de aquisição de bens que reforcem o bem-estar – ter um hobby, ter dois amigos, ter um cachorro ou outro animal de estimação, ter uma família – e uma psicofarmacologia de regulação dos níveis de serotonina nas redes neurais.
O estatuto new age desta psicologia reforça a relevância da psicanálise na subjetividade de uma época dominada pela expansão “tapa buraco” [iii] e, consequentemente, segregacionista do discurso científico. Na Introdução à Edição Alemã de Um Primeiro Volume dos Escritos, Lacan (1973) discute como o saber contemporâneo – seja em sua forma jurídica, seja em sua vertente científica - se dedica a segregar seu a-fundamento. E, neste sentido, a ascensão da psicologia positiva não ocuparia um lugar diferente: ao localizar a felicidade no córtex pré-frontal esquerdo, a psicologia cognitiva segrega o que a psicanálise escrevera como o axioma da humanidade: o pensamento de que é pela impossibilidade de uma relação que se faz a intrusão de um resto de real na existência humana.
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Quarenta e cinco anos nos separam do marco da teorização do objeto a no ensino de Lacan: o seminário sobre a angústia representa, neste ensino, o ponto de partida para a separação entre o real e o significante. Entre este seminário, com suas referências naturalizantes, e o seminário O Avesso da Psicanálise recoberto pelas luvas de Marx, um avanço importante ocorre em seu ensino: trata-se do movimento de transportar o objeto a para a atualidade histórica através dos quatro discursos. Entre os anos de 1964 e 1969, localizamos no seminário sobre Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise - onde o objeto a é a presença de um vazio que pode ser ocupado por qualquer objeto, sem hierarquia de valor - e em De um Outro a outro, onde avança sobre a homologia entre mais-valia marxista e mais gozar, as bases desta alavancagem conceitual, que será apresentada em O Avesso da Psicanálise. De fato, o seminário 17 representa o momento no ensino de Lacan em que o objeto a pluralizado na anatomia do corpo é transportado para o campo do discurso, introduzindo aí, um pedaço de real, na forma do objeto a. Em uma das lições de Um Esforço de Poesia, Miller (2003)[iv] nos oferece uma imagem singular e difícil dessa alavancagem teórica ao relatar as circunstâncias que conduziram ao abalo na hegemonia da lógica do significante. Uma dessas circunstâncias é a objeção feita por Althusser à hegemonia do Outro. Ainda que fosse no sentido de introduzir uma assimetria radical na intersubjetividade, Althusser denuncia que a psicanálise perpetuaria a metafísica, na medida em que não livra a psicanálise da prisão da verdade e nem de uma teorização sobre um Deus de puro significante. “Horror!” – eis a interjeição empregada por Lacan (Miller, 2007) diante desta conjuntura de seu próprio ensino, analisada por ele a partir do seminário De um Outro ao outro (1968-1969)[v] e que apontaria para a armadilha da metafísica. A partir daí, Lacan avançaria na direção de seu último ensino: a formulação do axioma sobre a inexistência do Outro e a elaboração de uma teoria sobre o fútil e o útil, cujo axioma é “saber fazer com o gozo”. O quadro da elaboração desses axiomas, centrais no ensino de Lacan, será inicialmente a perspectiva aberta pelos quatro discursos, sobre o destino assumido pelo gozo em cada giro discursivo que fundamenta a atualidade histórica.
Nesta perspectiva, o seminário O Avesso da Psicanálise (1969-1970)[vi] exprime o trabalho conceitual de um Lacan que conjugará os dois grandes eixos do pensamento moderno anti-metafísico: a teoria marxista da mais-valia e o aforisma nietszcheano da morte de Deus. E isso para sustentar a inexistência do Outro como marca de nossa época, e para localizar o giro discursivo que lança o objeto a para o zênite de nossa civilização. Lacan explora a risada irônica do capitalista, descrita por Marx em O Capital, para acentuar a presença, na aurora da modernidade, da experiência subjetiva do fútil, daquilo que cai muito rapidamente em desuso denunciando, assim, que a chuva de objetos que deriva do discurso utilitarista da ciência é, marcadamente, fútil. E trata-se de uma denúncia, na medida em que evidencia que o objeto produzido pela ciência para ser consumido não a protege de ser assolada pela futilidade.
Ao contrapormos o cientificismo que atravessa a direção da pesquisa atual em psicologia positiva com o conjunto dos autores que discutiram os novos sintomas na Conversação de Arcachon[vii] e na Convenção de Antibes[viii], não testemunhamos um apelo panfletário e desesperado em defesa da utilidade da psicanálise, ou o desenvolvimento de uma profilaxia baseada no reforço da virtude humana e cuja conseqüência seria a rejeição da clínica. Mas o tratamento rigoroso dos problemas que a época impõe à clínica, isolando o quadro sintomático atual: os desligamentos da pulsão em relação ao Outro, a pregnância do eixo imaginário, a presença maciça do pai da realidade, a falência do sentimento da vida, a experiência de fuga do corpo. Problemas que são referentes ao limite conceitual da lógica do significante e que impuseram a mudança de eixo da pesquisa em psicanálise no sentido de indicar a fratura no simbólico, típica de nossa época, e de sustentar a importância da teoria lacaniana do gozo. É neste sentido que a defesa de uma terapêutica da felicidade corre o risco de ser, ela mesma, um sintoma de época na medida em que apresenta todas as implicações imanentes à civilização do objeto a: a relevância da causalidade quantitativa biopsicossocial, a foraclusão do sujeito em nome da correlação entre processos psíquicos e atividade neural, o elogio do avanço tecnológico do imageamento cerebral que permite verificar tal correlação, e enfim, o recuo da condução clínica em nome da ascensão da psicometria. Da mesma forma que se atribui à psicanálise uma quota de responsabilidade pelo descentramento do homem em relação a si mesmo e pelo desvelamento do mais-gozar - devido a sua própria difusão -, é possível atribuir à mesma um papel fundamental no levantamento das conseqüências da ascensão do objeto a em nossa civilização. Assim, não se encontra na direção atual da pesquisa psicológica uma denominação mais formal, mais reduzida de adjetivos do que a denominação lacaniana para o sujeito na civilização do objeto a: debilidade mental.
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Nesse quadro new age, de um tempo marcado pelo triunfo da racionalidade técnica, tudo o que não se apresenta como terapêutico, ou reforçador homeostático, é tomado como ilegível. É nesse contexto, que uma psicologia positiva tem seu lugar. Ela é terapêutica, com sua ginástica e higiene de vida; ela pratica o bem e cultiva a virtude em seus spas terapêuticos e, aliada à psicofarmacologia, auxilia – segundo as palavras de Miller (2005) – “o infeliz a se recolocar sobre as patas (...) o remenda de modo que ele deixe rapidamente o seu consultório para retornar à produção”[ix].
Que lugar conceder à poesia lírica de Baudelaire nesse mundo new age?
Baudelaire é o fotógrafo, o pintor, de uma modernidade em ascensão no século XIX. Todavia sua poesia tem a natureza de um acontecimento: ultrapassa o limite do tempo. Seus personagens – o flâneur, o dândi e o trapeiro – são as diversas versões deste pintor que retrata o espírito do tempo, a vida mundana de uma modernidade que ainda é a nossa. Esse pintor nos ensina que o sobretudo negro é a vestimenta decadente mas, paradoxalmente, necessária de nossa época:
“Por falar em roupa, o invólucro do herói moderno – (...) será que a roupa não deveria ter a sua beleza e o seu charme próprios (...)? Será que não é desta roupa que a nossa época precisa? Pois nossa época que sofre e, ainda por cima, tem de suportar sobre os seuys magros ombros o negro, símbolo de uma tristeza eterna. O terno e a sobrecasaca negros não têm a sua beleza política apenas como expressão da igualdade universal - eles também têm uma beleza poética, enquanto expressão da estrutura espiritual pública representada numa imensa procissão de gatos-pingados políticos, gatos-pingados eróticos, gatos-pingados burgueses”[x].
A poesia lírica de Baudelaire não “tapa os buracos”, não recusa as clareiras imanentes a ascensão da modernidade.Ela tem afinidade com o real ao revelar no próprio traje negro que veste a multidão, a presença da substância do gozo. Ao final de sua descrição sobre o auge do preto na moda, ele acrescenta uma referência indireta ao ato do suicídio que invadiu a massa trabalhadora no final do século XIX: “Todos temos sempre algum enterro pela frente”[xi].
O Salão de 1845 foi escrito quase cem anos antes de O Mal-Estar na Civilização (1929[1930]). Em 1931, quando a ameaça de Hitler avançava na Europa, Freud não faz da psicanálise uma ciência “tapa buraco”. Ao final desse texto, ele inclui uma afirmação que evidencia a impossibilidade de pensar o Outro sem o gozo: “Agora só nos resta esperar que (...) o eterno Eros desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?”[xii]


[i] La Sagna, P. Controvérsias sobre lo Mental, in Colofon. Boletín de la Federación Internacional de Biblioteca del Campo Freudiano. Buenos Aires. n 26: Una Araña em el texto.
[ii] Miller, J.A. Cursode Orientação Lacaniana 2007-2008 – Sétima Lição
[iii] Trata-se de uma referência direta ao comentário de Lacan sobre a redução da linguagem ao conceito e ao seu uso pela ciência: “Essa futilidade, eu a aplico, sim, inclusive à ciência, que manifestamente só progride pela via do tapar buracos.” Lacan, J. Introdução à Edição Alemã de um primeiro volume dos Escritos, in Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2003.p.551
[iv] Miller, J.A. Lição XV. Aula de2 de abril de 2003, in Curso de Orientação Lacaniana. Um Esforço de Poesia. MIMEO.
[v] Lacan, J. Livro 16. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2008.
[vi] Lacan, J. Livro 17. O Avesso da Psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed., 1992.
[vii] Miller, J.A y Otros. Los Inclassificables de la Clínica Psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós, 2002.
[viii] Miller, J.A y Otros. La Psicosis Ordinária. Buenos Aires: Paidós, 2004.
[ix] Miller, J.A. O Sobrinho de Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005. p.113.
[x] Baudelaire, C. O Salão de 1845, in Benjamin, W. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo: Ed. Ática, 1985, p.101.
[xi] Baudelaire, C. O Salão de 1845, in Benjamin, W. A Paris do Segundo Império em Baudelaire. São Paulo: Ed. Ática, 1985, p.101.
[xii] Freud, S. O Mal-Estar na Civilização (1930[1929]), in Obras Completas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1979, pp.170-171.

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