FREUD, A CIÊNCIA E A TOXICOMANIA

FREUD, A CIÊNCIA E A TOXICOMANIA
Claudia Henschel de Lima

1. FREUD E A CIÊNCIA
O desenvolvimento da problemática da toxicomania, no interior da psicanálise é indissociável da colocação do problema acerca do status da psicanálise (como teoria e clínica) em nossos dias, em que a ciência está submetida ao regime capitalista.
Dois elementos definem a direção dada a investigação da toxicomania. São eles:
· A evolução dos conceitos em Freud está articulada a concepção do que vem a ser uma ciência.
· Isso será evidenciado pela descrição do modelo fisiológico empregado por Freud para explicar os efeitos da cocaína sobre o corpo. O fato da ciência funcionar como o ideal que orientará o entendimento sobre a cocaína, impõe o distanciamento entre os argumentos de Freud e os da psiquiatria clássica.

2. A ORIGEM DA CATEGORIA DE TOXICOMANIA

· Loucura Clássica.

A consideração a respeito da loucura na época clássica está intimamente articulada ao cogito cartesiano. A loucura está fora do cogito, reservada a mudez, destituída de linguagem própria. Apesar de vários textos do século XVII abordarem a loucura, ela é citada à título de exemplo - ou de uma espécie médica ou, na condição negativa de erro, como prova ao contrário do que seja a razão.


· Da loucura como impossibilidade de pensar à categoria de monomania

O texto de Michel Foucault História da Loucura na Época Clássica, No século XIX, isola para nós os seguintes enunciados a respeito do status que a loucura assume ao longo do século XIX. Nesse livro, Foucault mostra como há uma transformação no status da loucura entre o século XVII e o século XIX. Ela deixa de ser a impossibilidade de pensar, ou seja, deixa de ser o produto de uma alteração da inteligência, para ser o produto de uma alteração que ocorre no âmbito da vontade. Essa transformação explica o surgimento da categoria de monomania para explicar o universo da loucura e das ações mórbidas.

1. O louco desvenda a verdade elementar do homem: seus desejos primitivos, as determinações do corpo. Até onde uma paixão, a vida em sociedade, pode levar o homem. Tudo aquilo que o afasta de uma natureza primitiva que não conhece a loucura. Está sempre ligada a civilização e ao mal-estar.

2. A loucura mostra a interrupção da liberdade humana, o mergulho no determinismo do corpo. Nela, triunfa o orgânico, a única verdade do homem que pode ser objetivada e observada cientificamente. Mas a loucura se distingue das outras doenças orgânicas porque evidencia o mundo dos instintos, da perversidade, do sofrimento, da violência que normalmente está adormecido. A loucura evidencia uma profundidade que dá todo seu sentido à liberdade humana: essa profundidade é a maldade em estado puro.

3. A inocência do louco é garantida pela intensidade e força desse conteúdo psicológico, que é a maldade. Acorrentado pela força de suas paixões, arrebatado pela vivacidade dos desejos e imagens, o louco é o irresponsável. Sua irresponsabilidade é, então, objeto de observação médica, na medida em que resulta de um determinismo objetivo. A loucura de um ato é medida pelo número de razões que o determinaram. E, no entanto, nenhuma razão chega a esgotá-la. A verdade da loucura está num automatismo sem cadeias. E quanto mais um ato for esvaziado de razão, maior a possibilidade de ser determinado pela loucura. A verdade da loucura sendo, no homem, a verdade daquilo que é sem razão daquilo que só se produz, segundo Pinel, por uma determinação irrefletida, sem interesse e sem motivo.

4. A verdade humana que descobre a loucura está em contradição com a verdade moral e social do homem.


Até Freud, o modelo para o entendimento dos sintomas psicopatológicos: paralisia geral.
A grande estrutura que comanda toda a percepção da loucura está representada exatamente na análise dos sintomas psiquiátricos da sífilis nervosa.
A sífilis assimila a falta (perversidade, prevaricação, a determinação do ato pelo instinto), a condenação e o seu reconhecimento manifestados e ocultados numa objetividade orgânica.
O tema extremamente importante para o século XIX é que a falta logo encontra seu castigo e sua dimensão objetiva do lado objetivo do organismo. A loucura fecha o homem na objetividade. Para o século XIX, a loucura terá um equivalente externo - a essência da loucura será objetivar o homem considerá-lo no nível das coisas. O fato da loucura ser objetiva em sua totalidade, significa que ela não está em relação com uma atividade delirante central e oculta. Essa definição das loucuras sem delírio impõe uma ruptura conceitual com a concepção do século XVIII.
Na perspectiva nosológica de Pinel e Esquirol as loucuras são consideradas a partir de doi enunciados fundamentais:
· O cérebro é a sede da mente.
· As loucuras se enquadram na concepção de distúrbio funcional, não sendo mais definidas como uma desordem da inteligência.
Considerada, então, no quadro das desordens funcionais, as loucuras eram assim organizadas:

A. Manias

B. Monomanias: monomanias intelectuais, monomanias afetivas ou pensantes, monomanias instintivas (sem delírio).

C. Demências


Pinel pôde observar na Salpetrière que vários alienados não exibiam nenhuma lesão do entendimento, mas eram dominados por uma espécie de instinto de furor, como se as atividades afetivas fossem as únicas lesadas.
Prevalece, assim, no século XIX, a noção de desordem do comportamento, ou seja, os atos praticados independentemente da vontade, em contraposição a concepção da loucura como desordem intelectual (concepção característica do século XVII).
Tomemos o caso específico das monomanias instintivas. Ela provoca uma controvérsia de competência na psiquiatria nascente, entre a instância jurídica e a instância médica: de um lado, encontramos a descrição da categoria médico-legal da monomania homicida e, de outro, o grupo das diversas ações mórbidas (incêndio, roubo, assassinato, embriaguez).
Esquirol, por exemplo, define um status para as loucuras que não apresentam alteração da inteligência, nas quais o que se pode observar é uma desordem da ação. Segundo Dubuisson, os indivíduos que são vítimas dessa espécie de loucura " julgam, raciocinam e se comportam bem, mas são arrebatados pelo menor assunto, muitas vezes sem causa ocasional e somente por uma inclinação irresistível e por uma espécie de perversão das afecções morais, na direção de irritações maníacas, atos inspirados de violência, explosões de furor. É a essa noção que em 1835, os ingleses darão o nome de moral insanity. Vejamos o que comporta essa denominação. de uma lado, trata-se de uma loucura que não tem nenhum de seus signos localizados na esfera da razão (é uma loucura oculta que torna quase invisível a ausência de todo o desatino, loucura transparente e incolor que existe e circula na alma do louco - não parece alienados aos observadores mais superficiais e por isso são mais nocivos e perigosos); de outro lado, essa loucura tão secreta só existe porque explode na objetividade ( violência, desencadeamento dos gestos, às vezes, ato assassino). Ela consiste, então na queda na direção da objetividade mais visível; o encadeamento mecânico dos gestos irresponsáveis.
Uma outra noção que surge no século XIX, é a noção de monomania. Ela é integralmente construída em torno do escândalo que representa um indivíduo que se mostra louco em um ponto e mas permanece razoável em todos os demais pontos. O crime dos monomaníacos multiplicam esse escândalo, bem como o problema da responsabilidade que eles possuem diante dos atos. Um homem normal, sob todos os aspectos, comete repentinamente um crime brutal. Para seu ato criminoso, não é possível encontrar razão ou causa. Para explicá-lo não há lucro, interesse ou paixão. Uma vez cometido, o criminoso transforma-se no que era antes.
No começo do século XIX, os processos criminais eram atravessados por perguntas do tipo:
É possível afirmar que se trata de um louco? Será que a completa ausência de determinações visíveis, o vazio total de razões, permitem concluir pela não-razão daquele que cometeu o ato?
A irresponsabilidade se identifica com a impossibilidade de fazer uso de sua vontade. Portanto, identifica-se com um determinismo.
No entanto, em se tratando de um ato que não foi determinado por nada, não pode ser considerado irresponsável. É normal que um ato seja realizado sem razão, fora de tudo aquilo que poderia motivá-lo, torná-lo útil para um interesse, indispensável para uma paixão? Um ato que não se enraíze em uma determinação é insensato.

A jurisprudência anterior conhecia apenas as crises e os intervalos, ou seja, as sucessões cronológicas das fases da responsabilidade no interior de cada doença. No século XIX, o problema se complica: pode existir uma doença crônica que só se manifesta num único gesto, ou pode-se admitir que, repentinamente, um indivíduo se transforme em outro,, perca essa liberdade pela qual se define e se aliene de si mesmo?
Esquirol tentou definir aquilo que seria essa doença invisível, que inocentaria o crime monstruoso; reuniu seus sintomas: o sujeito age sem cúmplices e sem motivo; seu crime nem sempre diz respeito a pessoas conhecidas; e, uma vez realizado, " tudo se acabou para ele, o objetivo foi alcançado. Após o assassinato, ele fica calmo, não pensa em ocultar-se - essa seria a monomania homicida.
Essa controvérsia leva os sucessores de Esquirol a definir, com maior precisão, a distinção entre loucura e transtornos mentais sintomáticos, nos quais se encontram tanto os impulsos quanto a intoxicação por álcool, ópio e beladona[1].


· Monomania e Toxicomania

A origem da toxicomania é, portanto, bem evidenciada a partir das considerações acima a respeito da monomania e do deslocamento da problemática da loucura como ausência e impossibilidade de pensar (a loucura como problema da inteligência) para a loucura como determinada por uma ato impulsivo. A origem, portanto, da toxicomania situa-se na discussão sobre a mania aplicada a problemática dos distúrbios dos atos impulsivos.
As noções psiquiátricas de delírio, alucinação e obsessão contém as bases da controvérsia atual em torno da toxicomania.
Emmanuel Régis, foi um dos primeiros a empregar o termo " toxicomania". Para ele, as tendências impulsivas devem se aplicar à "solicitação motriz involuntária em direção a um ato e não ao próprio ato, cuja execução pode falhar". Em outras palavras, a excitação maníaca que se manifesta na forma de um ímpeto irresistível dirigido aos venenos artificiais, precede o ato toxicomaníaco. É neste sentido, que a psiquiatria distingue a categoria clínica da toxicomania, caracterizada como uma necessidade imperiosa de se intoxicar, da série metonímica: morfinomania, eteromania, cocainomania, haxixomania, cloromania e opiomania.

*
[1] Em seu livro Arquivos da Loucura. Juliano Moreira e a Descontinuidade Histórica da Psicquiatria (2003), Vera Portocarrero apresenta uma breve descrição a respeito da idéia de se criar um reformatório para alcóolatras no Rio de Janeiro na época da fundação da colônia. Apesar de, efetivamente, não ter acontecido a criação desse reformatório, houve a idéia - o que mostra a possibilidade de viabilizar, na prática a separação entre os " verdadeiros doentes" (a quem os hospícios estariam destinados) e os " anormais" (que, no final do século XIX, eram considerados como passíveis de se submeterem à ordem social por meio de profilaxia específica.
Um projeto de reformatório para alcoólatra surge a partir da concepção de que todo degenerado pode ser recuperado e deve, portanto, ser assistido de acordo com suas particularidade e não de forma indiferenciada, misturando-se com os verdadeiros doentes mentais nos manicômios

Comentários

Renata Machado disse…
Claudia,
Parabéns pelo Blog!!!
Li o artigo. Particularmente gosto bastante de contextualizações históricas, mas confesso que não entendi 100%. O artigo "deprimido ou triste" estava mais amigável para mim, uma iniciante.
Continue "postantando" muitos artigos, virei sempre por aqui, já até salvei em meus favoritos.

Beijoca,
Renata Machado

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