O QUE É PRECISO PARA VIVER UM GRANDE AMOR?

"O que é preciso para viver um grande amor?”

Cláudia Henschel de Lima (Psicanalista e professora universitária. Coordena o Núcleo de Pesquisa em Toxicomania e Alcoolismo do Instituto de Clínica Psicanalítica do Rio de Janeiro e o Laboratório de Investigação em Psicopatologia Contemporânea).

Equipe de alunos que auxiliou na busca de dados: Adilson Pimentel Valentim, Carlos Emmanuel Rocha, Natália Rodrigues – alunos do 7 período do curso de Psicologia do Uni-IBMR)

No dia primeiro de março, o programa Fantástico exibiu uma matéria sobre desempenho sexual do brasileiro e a descoberta da pílula do amor. A matéria tinha como base duas pesquisas: a primeira, conduzida pela psiquiatra Carmita Abdo, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, que concluiu que 47% dos brasileiros fazem sexo sem vontade; e a segunda, comandada por Larry Young na Universidade de Emory (no estado americano da Geórgia), que observou o comportamento de roedores e concluiu que as fêmeas que recebem doses de ocitocina apresentam um comportamento apaixonado. Essa pesquisa norte-americana, fundamentada no modelo neurofisiológico, evidencia que a capacidade de estabelecer laços amorosos está correlacionada à localização dos neurônios receptores dos hormônios ocitocina e vasopressina. O que significa que a maior concentração desses receptores na área cerebral de recompensa – responsável pelo prazer e pelo vício – facilita o apaixonamento.

"É muito possível desenvolver drogas para acelerar o envolvimento com outras pessoas ou mesmo facilitar a procura por um amor" - assegura Larry Young. Após 27 de casamento um americano não se deixa apanhar pela dúvida: "É claro que eu tomaria uma pílula para aumentar a dose de amor que tenho por alguém".
"Um medicamento como esse poderia muito bem ser usado em terapia de casais" - prevê o cientista. "Ingerindo um pouco de ocitocina, você poderia focar mais no parceiro e se relacionar melhor com ele. Então, há sérias indicações de que a ocitocina nos deixa mais próximos e pode ter importância na criação de um novo relacionamento" - complementa.
A pergunta que introduz a pesquisa norte-americana também se aplica à pesquisa sobre desempenho sexual do brasileiro. Afinal, em ambas as pesquisas, sobre sexo e amor, prevalece o argumento da ausência de vontade e a hipótese bioquímica de sua recuperação.

Sendo assim, vale recolocar a questão: o que é preciso para viver um grande amor?; o que é preciso para reacender a chama de um amor que há muito se perdeu no passado da juventude, na rotina das contas a pagar, no clichê dos conflitos conjugais?

Para a abordagem biológica e comportamental, vale a esperança de que a técnica científica produza um remédio para todas as interrogações da alma, a fim de curar não só as dores cotidianas, que são imanentes a existência de cada um (envelhecer, adoecer, conviver com os outros), como também prever seu futuro aparecimento. Então, diante da pergunta difícil sobre reacender a chama de um amor que a própria existência apagou, nada mais esperançoso e conveniente do que a resposta científica e prudente de nossa época: “Eis a pílula do amor: para a mulher, a ocitocina; para o homem, a vasopressina!”

No entanto, a exclamação de um ufa! interrompe bruscamente a descrição entusiasmada da promessa biológica e nos coloca diante da outra face da moeda científica: a utopia técnica prevê a cura do mal-estar que é característico à condição humana de ser finito, de ter limite, de ratear, de não saber tudo a respeito de si e do próximo, de ocorrerem diferenças entre o homem e a mulher, que se apresenta em sua máxima intensidade na relação com os pares.

Isso fica evidente no conteúdo da justificativa dada por cada homem e mulher após responder ao levantamento sobre comportamento sexual: ter medo de parecer pouco viril diante da parceira, não decepcionar quem se ama. São exemplos do que se passa em cada ser humano diante do encontro sexual. E isso é diferente para o homem e para a mulher, de modo que a própria reciprocidade do amor e do desejo é função desta diferença.

O fundador da psicanálise Sigmund Freud chamou de Liebesbedingung, essa condição típica e única do amor: é o traço particular que causa a chama que se acende entre um homem e uma mulher. Só que essa condição é singular e pode ser absolutamente banal, como por exemplo, a textura alva da pele de uma mulher (conforme o relato de uma paciente de Freud) ou a imagem de quem um dia se foi no passado (imagem narcísica). Mas o interessante é, justamente, o fato de uma bobagem, uma coisa sem sentido, acender a chama do amor. E é interessante porque o terreno da besteira parece ainda resistir à medida e ao controle da ciência.

A previsão científica de cura do limite apagou a radicalidade da experiência subjetiva e com isso se fortaleceu uma experiência subjetiva da irresponsabilidade. No amor, a irresponsabilidade aparece no personagem do eu sozinho, comum no serial lover.

O psicanalista francês Jacques-Alain Miller, em recente entrevista ao Psychologies Magazine (outubro 2008, n° 278) caracteriza o serial lover como um sujeito que acredita que é completo sozinho e, no amor, dispensa reconhecer e conviver com limites, deixando, portanto, de reconhecer que precisa do parceiro. O serial lover anula o “jogo” delicioso do amor, convertendo-o na manipulação de sua (seu) parceira (o) - como se estivesse num teatro de marionetes. Jamais amará alguém, exatamente porque acredita que tudo é uma questão de química, carne, ou de um script pré-estabelecido, dispensando os riscos, as delícias de se viver uma experiência onde o limite e a finitude são as regras que tornam incontrolável o jogo do amor. O serial lover contemporâneo invalida a tese balzaquiana do amor (“toda paixão que não se acredita eterna é repugnante”). Neste sentido, ele é filho da técnica, um amante consumidor da pílula do amor, que deseja controlar tudo, inclusive o tempo que passa e deixa suas marcas no belo que se degrada e na virilidade que declina.

Diante do resultado da pesquisa brasileira - e, em particular do lamento televisivo dos casais que aceitaram falar de seus sentimentos em um programa de televisão, confessando que suas juras de amor são balelas ou mentiras - cabe pensar queo amor não é produto de uma regulação biológica, não é um teatro de marionetes, nem uma condenação ao pior. É um caminho tortuoso atravessado pelo mal entendido, onde a saída pode ser apenas se dar o direito de aprender, dia após dia, o vocabulário que constitui a vida particular de seu parceiro, tateando e buscando as chaves - desde sempre revogáveis - da parceria amorosa.

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