Ethos moderno em Baudelaire. Cláudia Henschel de Lima

(Trecho do artigo sobre psicanálise e literatura na modernidade ainda no prelo).

Um dos traços mais marcantes do século XX foi a elaboração de uma concepção crítica a respeito da contemporaneidade. Cito como exemplo, o pensamento de Martin Heidegger, Hanna Arendt, Michel Foucault e, na psicanálise, de Jacques-Alain Miller.
São pensadores que, no campo filosófico e analítico, abordam a contemporaneidade problematizando sobre a atualidade e o posicionamento assumido pelo intelectual diante das transformações dos saberes e das relações de poder.
No caso específico de Michel Foucault, é importante ressaltar o que ele próprio denominara de ontologia do presente, extensamente analisado em “O que são as Luzes?”.
Nesse artigo, Foucault elabora uma definição precisa da ontologia do presente. Trata-se de conduzir uma “genealogia, não tanto da modernidade, mas da modernidade como questão”, ou seja, é tornar a modernidade um enigma para o pensamento filosófico. Dessa forma, a ontologia do presente se delineia no momento preciso em que se valoriza o posicionamento subjetivo do intelectual frente a época, contrapondo-se a periodizações lineares do tipo modernidade-pós-modernidade.
Com o objetivo de consolidar a ontologia do presente, Foucault recorrerá à resposta de Kant à questão “O que são as Luzes?”, proposto por... e à poesia de Charles Baudelaire.
O posicionamento de Kant, nesta resposta interessa à Foucault na medida em que, ao sustentar a tarefa do filósofo pela máxima sapere aude – tenha a coragem, a audácia de saber - evidencia a relevância do posicionamento ético assumido pelo filósofo na modernidade, para além de uma interrogação referente a cientificidade da ciência típica da analítica da verdade. Mas, para além, também, de uma determinação da modernidade a partir de um calendário de fatos históricos fixos e lineares. Trata-se, aqui, de valorizar a aparição tipicamente moderna de um ethos, de um posicionamento que um filósofo pode individualmente assumir frente ao tempo. No entanto, no processo de consolidação do posicionamento do filósofo, Foucault vai além de Kant. Ele cita a poesia de Baudelaire nessa vertente da ética e do tempo, como expressão de uma das consciências mais críticas da modernidade do século XIX. De fato, a poesia de Baudelaire se refere diretamente à modernidade a partir da experiência subjetiva de uma descontinuidade no tempo - ruptura da tradição, sentimento de novidade, vertigem do tempo que passa – e do modo como o poeta emprega as alegorias da morte, da destruição e degeneração para retratar o objeto central de sua poesia lírica: a cidade de Paris no século XIX.
O posicionamento de Baudelaire não significa uma aceitação incondicional das características de uma época. Significa, antes, assumir uma determinada atitude em relação a esse movimento, mostrando o ponto de impossível existente nela. Tomemos a situação do pintor e do poeta moderno, exposta por Baudelaire no Salão de 1859. O poeta encontra pela rua, os traços que compõem um modo de ser da época e, a partir desse encontro, conduzem uma crítica precisa à esses traços. Tal crítica aparece, por exemplo, na predominância do preto e do cinza no vestuário masculino a partir da Monarquia de Junho. Sobre esse ponto, Benjamin (1985) destaca a seguinte passagem do texto de Baudelaire:
“Entre todos, será chamado de O Pintor aquele que conseguir decantar o lado épico da vida presente e nos ensinar, com linhas e cores, a entender como somos grandes e poéticos em nossos sapatos de verniz e em nossas gravatas. Esperemos que os autênticos pioneiros nos dêem, no próximo ano, o especial prazer de podermos festejar o surgimento de algo realmente Novo”.
Essa dimensão da ontologia do presente parece se realizar, em Baudelaire, no momento em que ele faz da cidade a matéria para compor sua poesia e, principalmente, para erguer através do pintor e do poeta, uma nova atitude para as artes. De fasto, no trecho acima citado, testemunha-se um Baudelaire que espera por um futuro em que o pintor, o verdadeiro pintor saberá arrancar à vida atual a sua componente épica e ambiciona que possam os verdadeiros pesquisadores nos oferecer no próximo ano a alegria singular de celebrar o surgimento do novo!
Nesse movimento de composição da poesia lírica a partir das transformações abruptas da cidade, o personagem do flâneur se destaca. Ele se posiciona com estranhamento diante do favorecimento do capital financeiro e da reestruturação do espaço arquitetônico com a construção dos boulevards. Assim, a especulação da Bolsa e as longas avenidas passam a ocupar, no século XIX, o lugar dos jogos de azar, típicos da sociedade feudal, jogados nas ruas estreitas de uma Paris antiga. O personagem do flâneur retrata precisamente essa transformação no tempo – pela ascensão do mercado de consumo e da quantificação do trabalho - e no espaço, pela arquitetura das avenidas largas: é uma Paris estranha ao parisiense.
Outro momento é o poema “O Cisne”, onde Baudelaire retrata o exílio no interior desta cidade, reconstruída a partir de projeto de reurbanização do Barão Haussmann que, por sua vez, se preocupava com a proliferação das barricadas. Seu projeto arquitetônico incluiu a expansão da largura das avenidas, bem como a abertura de novas avenidas para diminuir o trajeto entre as casernas e os bairros operários. Assim, obedecendo ao eufemismo do embelezamento estratégico, o projeto de Haussmann impôs a desaparição de bairros inteiros; antigos pardieiros cederam lugar à praças amplas, jardins e alamedas, segundo um processo abrupto de modernização que culminaria em uma reformulação radical e completa da cidade. O poema “O Cisne” retrata com precisão este momento.

I
Andrômaca, eu penso em você! Esse pequeno rio,
Pobre e triste espelho onde outrora resplendia
A imensa majestade de suas dores de viúva,
Esse Simeonte mentiroso que aumenta com teu pranto,
Fecundou subitamente minha memória fértil,
Quando eu atravessava o novo Carrossel.
A velha Paris não existe mais (a forma de uma cidade
Muda mais rápido, ah! que o coração de um mortal);
Só em espírito vejo todo esse campo de barracos,
Essas pilhas de capitéis esboçados e de cornijas,
Os gramados, os grandes blocos esverdeados pela água das poças,
E, brilhando no ladrilho, a confusão de quinquilharias.
Lá era exposta outrora uma feira de animais;
Lá eu vi, numa manhã, quando sob o céu
Frio e claro o Trabalho acorda, onde a sujeira
Impele um furacão sombrio no ar silencioso,
Um cisne que escapara de sua jaula,
E, esfregando seus pés espalmados sobre o pavimento seco,
Sob o sol áspero arrastava sua plumagem branca.
Junto a regato sem água, o animal abrindo o bico
Banhava nervosamente suas asas na poeira,
E dizia, com o coração cheio de seu belo lago natal:
"Água, quando cairás? quando soarás, raio?"
Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,
Em direção ao céu às vezes, como o homem de Ovídio,
Em direção ao céu irônico e cruelmente belo,
Sobre seu pescoço convulsivo esticando seu rosto ávido,
Como se lançasse uma censura a Deus!
(BAUDELAIRE, 1976a, p. 85-86).

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